quarta-feira, 17 de outubro de 2012

A RQUESTRA DE ARES


ARQUEIROS

A guerra se aproximava, não era mais uma guerra simplesmente, mas a guerra. Os povos do norte vinham por duas frentes, pela encosta montanhosa ao norte e pelo mar em centenas de navios, a noroeste. Nosso povo não iria se render com facilidade, mas havia, entre os membros do conselho, quem pensasse que dessa vez o melhor seria tentar um acordo de paz com o inimigo, mesmo sabendo que isso nos custaria vidas, liberdade e impostos; um preço muito alto para um povo acostumado a lutar e conquistar impérios.

Assim eu, que nunca havia pegado em um arco antes, fora recrutado para as fileiras dos arqueiros, o batalhão de elite entre os pelotões de guerra. Era um privilégio estar ali, mas eu sabia que era por causa da minha juventude, minha boa visão e meu corpo ainda não mutilado, atributos raros entre povos guerreiros. Eu fazia parte de um grupo de cem jovens que iniciariam um treinamento para ser arqueiro. Poucos tinham alguma experiência anterior com arco e flecha. Nosso instrutor era um comandante considerado herói de guerra por anos de batalhas memoráveis e que se tornaram lendas entre os povos do sul. Ficar diante daquele homem, por si só já era uma honra para qualquer um. Nos primeiros dias quem nos recebeu foi seu braço direito, Direito, sim, esse era seu nome, Direito. Ele só possuía o olho direito, seu olho diretor na mira com o arco. Após alguns dias treinando os braços e atirando em alvos de couro a nossa frente, pouco progresso havia sido feito, e o dia da batalha se aproximava. Nossos prognósticos não eram nada animadores.

Na manhã do quarto dia uma surpresa, o comandante do pelotão dos arqueiros, Máximus, veio pessoalmente nos recepcionar no campo de treinamento. À frente do pelotão perfilado, ele levantou seu vozeirão e contou algumas histórias de outros grupos que ele havia treinado e que estavam bem piores que o nosso e com menos tempo de treinamento, e mesmo assim foram decisivos na formação de nosso reino. Ao final do discurso, deu a ordem ao seu imediato para que todos parassem o treinamento imediatamente e fossem ao liceu de artes aprender a tocar arpa. Ninguém entendeu nada daquela ordem, no entanto, Direito, já acostumado aos costumes poucos convencionais de seu chefe, cumpriu a ordem sem nenhum sinal de estranhamento. No liceu, cada candidato a arqueiro pegou um arpa e recebeu instruções dos alunos e professores para dedilhar o instrumento. Foi um festival de desafinação, de notas dissonantes e cordas se quebrando entre os dedos mais acostumados ao trato da espada ou da enxada. Assim foi no primeiro dia, no segundo e no terceiro. Já estávamos com saudades do arco, à espera que o professor finalmente desistisse de nós e nos enviasse novamente ao campo de treinamento. Foi quando nosso comandante apareceu no pátio. Atravessou o corredor central sem dizer nada, tomou uma arpa e tocou o instrumento com uma precisão impressionante. Era curioso ver aquelas mãos pesadas deslizar agilmente seus dedos entre as cordas frágeis da arpa; seus olhos fechados e seu rosto em transe davam-lhe um aspecto ainda mais lendário. O próprio professor parou para ver o espetáculo. Ao final do último acorde, o comandante, encarando a plateia hipnotizada, disse: - Isso, senhores, é a música da guerra. Cada nota despertada é uma flecha lançada. São essas notas que despertam os deuses da guerra. Toquem elas suavemente aqui e vocês conseguirão lançar suas flechas com mais precisão. Lembrem-se, Apolo nunca dispensou sua lira, e, no entanto é o melhor atirador de flechas entre os deuses, melhor até que Eros, que tem como único instrumento o arco e flecha.

A partir daquele momento nossa dedicação aumentou, todos queríamos aprender a tirar música daquele instrumento divino. Alguns dias depois já entendíamos de notas, semi-notas, oitavas a cima e a baixo. De volta ao campo de treinamento, com as melodias ainda na mente, nossas flechas eram mais precisas, o couro as recebia com certa receptividade. Trocamos as forças dos braços pela suavidade e precisão dos dedos.

Chegou o dia da guerra. Todos perfilados para dar início ao combate. O pelotão de frente, a infantaria com suas espadas e escudos já gritavam seus brados de guerra na iminência de avançar sobre o inimigo. Sabíamos que o primeiro acorde daquela sinfonia era nosso, dos arqueiros, estrategicamente colocados por último, ao lado dos cavaleiros. Os primeiros soldados do inimigo, a pé, já avançava gritando, babando, mostrando toda sua fúria sobre nós. Nesses gritos parecia que os deuses mais raivosos da guerra estavam com eles. O temor entre nosso povo foi geral. Nesse momento, Máximo, nosso comandante, se colocou diante do pelotão e falou:

-Arqueiros, agora é conosco, vamos tocar nossa música de embalar os deuses! Lembrem-se de afinar bem seus instrumentos para que cada nota saia perfeita, os deuses são exigentes. Sintam o ritmo do coração e toquem suas cordas o melhor que puderem, nossas vidas dependem disso. A primeira nota é minha.

O comandante esticou seu arco e disparou uma flecha solitária que cruzou o campo e foi se alojar no peito de um soldado barbudo logo após atravessar seu escudo. Nota perfeita. Ao sinal do imediato, levantamos nossos arcos devidamente abastecidos com suas flechas e disparamos ao mesmo tempo uma chuva de flechas que derrubou toda a primeira falange de soldados inimigos. Notas perfeitas. A partir daí cada um compunha a sinfonia com seu melhor toque. A música podia ser ouvida nos assobios sibilantes das flechas que cruzavam o campo, nos passos interrompidos dos soldados inimigos e em seus gritos de dor ao serem atingidos em alguma parte do corpo. Nossos primeiros soldados avançavam, e também eram alvos das flechas que vinham do outro lado. A música tinha seus repiques. Ao atirar as flechas, eu só ouvia a música tocada pelo comandante dias antes naquela sala do liceu, o ritmo, acompanhando as batidas do coração, agora era mais acelerado. Nossos sentidos eram arrebatados por alguma força superior que nos fazia atirar, atirar e atirar. Na verdade, eu já não sabia se estava tocando ou atirando. O arco era uma extensão de meu corpo. No meio de tanta fúria e carnificina, era possível ver Ares, o deus da guerra, dançando sua marcha imperial ao som da sinfonia macabra. E nós, arqueiros, caprichávamos nos acordes a cada flecha lançada. Os soldados e os cavaleiros também tiravam suas notas de seus instrumentos, mas cabia a nós a parte melódica do baile de Ares.

Vencemos mais uma guerra com poucas baixas de nossos soldados graças, sobretudo, a nossa habilidade com o arco. Os deuses apreciaram nossos acordes. Após essa batalha, nosso pelotão, sob o comando de Máximus, adquiriu ainda mais respeito e nossa fama precedia as batalhas. Passamos a ser conhecidos como a orquestra de Ares.

 

Zeca d’Oxóssi da Aldeia Tupinambá – Ao meu pai - Okê Arô!