ARQUEIROS
A guerra se
aproximava, não era mais uma guerra simplesmente, mas a guerra. Os povos do
norte vinham por duas frentes, pela encosta montanhosa ao norte e pelo mar em
centenas de navios, a noroeste. Nosso povo não iria se render com facilidade,
mas havia, entre os membros do conselho, quem pensasse que dessa vez o melhor seria
tentar um acordo de paz com o inimigo, mesmo sabendo que isso nos custaria vidas,
liberdade e impostos; um preço muito alto para um povo acostumado a lutar e
conquistar impérios.
Assim eu, que
nunca havia pegado em um arco antes, fora recrutado para as fileiras dos
arqueiros, o batalhão de elite entre os pelotões de guerra. Era um privilégio
estar ali, mas eu sabia que era por causa da minha juventude, minha boa visão e
meu corpo ainda não mutilado, atributos raros entre povos guerreiros. Eu fazia
parte de um grupo de cem jovens que iniciariam um treinamento para ser
arqueiro. Poucos tinham alguma experiência anterior com arco e flecha. Nosso
instrutor era um comandante considerado herói de guerra por anos de batalhas
memoráveis e que se tornaram lendas entre os povos do sul. Ficar diante daquele
homem, por si só já era uma honra para qualquer um. Nos primeiros dias quem nos
recebeu foi seu braço direito, Direito, sim, esse era seu nome, Direito. Ele só
possuía o olho direito, seu olho diretor na mira com o arco. Após alguns dias
treinando os braços e atirando em alvos de couro a nossa frente, pouco
progresso havia sido feito, e o dia da batalha se aproximava. Nossos prognósticos
não eram nada animadores.
Na manhã do
quarto dia uma surpresa, o comandante do pelotão dos arqueiros, Máximus, veio
pessoalmente nos recepcionar no campo de treinamento. À frente do pelotão perfilado,
ele levantou seu vozeirão e contou algumas histórias de outros grupos que ele
havia treinado e que estavam bem piores que o nosso e com menos tempo de
treinamento, e mesmo assim foram decisivos na formação de nosso reino. Ao final
do discurso, deu a ordem ao seu imediato para que todos parassem o treinamento
imediatamente e fossem ao liceu de artes aprender a tocar arpa. Ninguém
entendeu nada daquela ordem, no entanto, Direito, já acostumado aos costumes
poucos convencionais de seu chefe, cumpriu a ordem sem nenhum sinal de estranhamento.
No liceu, cada candidato a arqueiro pegou um arpa e recebeu instruções dos alunos
e professores para dedilhar o instrumento. Foi um festival de desafinação, de
notas dissonantes e cordas se quebrando entre os dedos mais acostumados ao
trato da espada ou da enxada. Assim foi no primeiro dia, no segundo e no terceiro.
Já estávamos com saudades do arco, à espera que o professor finalmente
desistisse de nós e nos enviasse novamente ao campo de treinamento. Foi quando
nosso comandante apareceu no pátio. Atravessou o corredor central sem dizer
nada, tomou uma arpa e tocou o instrumento com uma precisão impressionante. Era
curioso ver aquelas mãos pesadas deslizar agilmente seus dedos entre as cordas
frágeis da arpa; seus olhos fechados e seu rosto em transe davam-lhe um aspecto
ainda mais lendário. O próprio professor parou para ver o espetáculo. Ao final
do último acorde, o comandante, encarando a plateia hipnotizada, disse: - Isso,
senhores, é a música da guerra. Cada nota despertada é uma flecha lançada. São
essas notas que despertam os deuses da guerra. Toquem elas suavemente aqui e
vocês conseguirão lançar suas flechas com mais precisão. Lembrem-se, Apolo
nunca dispensou sua lira, e, no entanto é o melhor atirador de flechas entre os
deuses, melhor até que Eros, que tem como único instrumento o arco e flecha.
A partir
daquele momento nossa dedicação aumentou, todos queríamos aprender a tirar
música daquele instrumento divino. Alguns dias depois já entendíamos de notas,
semi-notas, oitavas a cima e a baixo. De volta ao campo de treinamento, com as
melodias ainda na mente, nossas flechas eram mais precisas, o couro as recebia
com certa receptividade. Trocamos as forças dos braços pela suavidade e
precisão dos dedos.
Chegou o dia
da guerra. Todos perfilados para dar início ao combate. O pelotão de frente, a infantaria
com suas espadas e escudos já gritavam seus brados de guerra na iminência de
avançar sobre o inimigo. Sabíamos que o primeiro acorde daquela sinfonia era
nosso, dos arqueiros, estrategicamente colocados por último, ao lado dos
cavaleiros. Os primeiros soldados do inimigo, a pé, já avançava gritando,
babando, mostrando toda sua fúria sobre nós. Nesses gritos parecia que os
deuses mais raivosos da guerra estavam com eles. O temor entre nosso povo foi
geral. Nesse momento, Máximo, nosso comandante, se colocou diante do pelotão e
falou:
-Arqueiros,
agora é conosco, vamos tocar nossa música de embalar os deuses! Lembrem-se de
afinar bem seus instrumentos para que cada nota saia perfeita, os deuses são exigentes.
Sintam o ritmo do coração e toquem suas cordas o melhor que puderem, nossas
vidas dependem disso. A primeira nota é minha.
O comandante
esticou seu arco e disparou uma flecha solitária que cruzou o campo e foi se
alojar no peito de um soldado barbudo logo após atravessar seu escudo. Nota
perfeita. Ao sinal do imediato, levantamos nossos arcos devidamente abastecidos
com suas flechas e disparamos ao mesmo tempo uma chuva de flechas que derrubou
toda a primeira falange de soldados inimigos. Notas perfeitas. A partir daí
cada um compunha a sinfonia com seu melhor toque. A música podia ser ouvida nos
assobios sibilantes das flechas que cruzavam o campo, nos passos interrompidos
dos soldados inimigos e em seus gritos de dor ao serem atingidos em alguma
parte do corpo. Nossos primeiros soldados avançavam, e também eram alvos das
flechas que vinham do outro lado. A música tinha seus repiques. Ao atirar as
flechas, eu só ouvia a música tocada pelo comandante dias antes naquela sala do
liceu, o ritmo, acompanhando as batidas do coração, agora era mais acelerado. Nossos
sentidos eram arrebatados por alguma força superior que nos fazia atirar,
atirar e atirar. Na verdade, eu já não sabia se estava tocando ou atirando. O
arco era uma extensão de meu corpo. No meio de tanta fúria e carnificina, era
possível ver Ares, o deus da guerra, dançando sua marcha imperial ao som da
sinfonia macabra. E nós, arqueiros, caprichávamos nos acordes a cada flecha
lançada. Os soldados e os cavaleiros também tiravam suas notas de seus
instrumentos, mas cabia a nós a parte melódica do baile de Ares.
Vencemos mais
uma guerra com poucas baixas de nossos soldados graças, sobretudo, a nossa habilidade
com o arco. Os deuses apreciaram nossos acordes. Após essa batalha, nosso pelotão,
sob o comando de Máximus, adquiriu ainda mais respeito e nossa fama precedia as
batalhas. Passamos a ser conhecidos como a orquestra de Ares.
Zeca d’Oxóssi da Aldeia Tupinambá – Ao meu pai - Okê Arô!