terça-feira, 19 de junho de 2012

UMA OFERENDA ESPECIAL A IEMANJÁ

DOIS DE FEVEREIRO (EBÓ YÁ)

Zé voltava do Mercado municipal satisfeitíssimo com seu meio quilo de camarão defumado no banco de trás do carro. A Rainha Mãe merecia o melhor, sua energia protetora estava sendo sentida muito forte nas últimas semanas e agora, às vésperas de seu dia, era hora de oferendar algo muito especial em agradecimento. Zé resolveu fazer o melhor para ela, ia fazer o ebó yá, um prato raro nas oferendas, tanto pela dificuldade de achar os ingredientes quanto pelo preparo cheio de regras e cuidados. Mas bom filho de santo sabe como é, escolhe os maiores e mais perfeitos grãos, o animal mais belo, as folhas mais verdinhas, o melhor camarão; enfim, tudo do melhor. Zé chegou em casa e colocou os camarões junto com os outros ingredientes que havia comprado durante a semana. Ele mesmo iria preparar esse prato. A oferenda seria no dia seguinte.

Naquela noite, cozinhou a canjica, sem tempero, somente na água. Levou a canjica à torneira num escorredor e deixou esfriar na água corrente. Os grandes camarões defumados, Zé deitou-os sobre uma frigideira com um fino fio de azeite branco, deixou dourar levemente e tampou, cozinhando apenas o suficiente para ficar no ponto. O cheiro se tornava irresistível. A Rainha Mãe ia gostar.

Colocou três folhas de mamona sobre um balaio médio de palha e sobre elas despejou suavemente a canjica cozida. Os camarões ornamentaram a borda do cesto em fileira douradas, parecendo querer sair do prato. Sobre eles, Zé derramou com todo cuidado mais um pouco um finíssimo fio de azeite branco, apenas um pouquinho. É preciso cuidado, pois o azeite de dendê é quizila de Oxalá e a canjica é a comida principal dele, por isso é bom não arriscar, não colocar muito azeite sobre a canjica. Por fim Zé cortou algumas rodelas de cebola branca e espalhou sobre ela. Pronto, o prato estava completo. Ao término, uma oração cheia de esperanças em agradecimento pela honra de poder oferendar a iguaria. A Rainha Mãe iria gostar, com certeza.

Ainda de madrugada, Zé partiu com a família e os apetrechos no carro em direção à praia. Tudo tranquilo, até a viajem parecia uma alegre cerimônia, nenhum problema no caminho, a estrada estava incrivelmente fluindo. No caminho Zé ainda comprou um barco de isopor azul, pequeno, mas grande o suficiente para carregar o prato para bem longe das ondas. Já imaginava seu barco navegando além das ondas e entregando pessoalmente prato todo especial. A Rainha ia gostar, isso era certo.

O dia estava ensolarado e o mar estava um pouco agitado, um festival de ondas se sucedia e vinha lamber os pés dos filhos na praia. Parecia que Iemanjá queria receber logo os presentes. Na areia, eram inúmeros os ofertantes, uma imensa legião de pessoas de todas as cores vestindo branco espalhavam-se pela orla, alguns até de turbantes enfeitando a cabeça, todos felizes com seus pratos, barcos, sabonetes, espelhos, flores e outros apetrechos de oferendas nas mãos. Zé olhou ao redor e percebeu que seu ebó yá era o único. Sorriu. A Rainha ia gostar.

Adiantou-se entre os demais ofertantes o mais longe que pode da areia e colocou seu barco onde as ondas ainda iniciavam pequenas. Mas por alguma razão estranha seu barco não flutuava, logo que era colocado sobre a água ele afundava. Zé, vendo que as oferendas dos demais iam longe e os parentes na praia batiam palmas ao ver tal espetáculo, tentou por diversas vezes fazer com que seu prato flutuasse ao menos um pouco, para que a Rainha pudesse apreciar melhor a iguaria tão delicadamente preparada. Nada adiantou. O barco não navegava meio metro sequer. Ainda que Zé fosse o mais distante possível da praia, já molhado até a cabeça. Não houve jeito. O barco afundava imediatamente. E assim o barco foi tragado tão logo ele o soltou. E, por incrível que pareça, nem os restos de isopor foram vistos sobre a água.

Zé voltou para casa decepcionado, tanta dedicação e a Rainha Mãe não aceitara seu prato. Pensou no trabalho que dera consegui os camarões, na dificuldade em arrumar aquelas folhas de mamonas que não tinham em lugar nenhum da cidade, no carinho que preparara o prato à noite e finalmente na oração com o coração cheio de alegria ao final. Como ela pode não ter recebido a oferenda? Deveria ter oferecido flores, pensou. No caminho de volta o silencio no carro era absoluto. Nem as crianças manifestaram suas costumeiras brincadeiras entre eles e preferiram dormir.

No dia seguinte Zé foi conversar com seu Gerônimo, um velho benzedor conhecido do bairro. -Pois é Se Gê, tanto trabalho para nada. Sem querer desmerecer, mas quando vi todos aqueles pratos bem mais simples que o meu navegar pra bem longe e as pessoas todas alegres batendo palmas enquanto o meu afundava igual pedra, o senhor não imagina minha tristeza. O eu fiz de errado?

-É mesmo, meu filho? He, he, he, he. O velho ria gostosamente da inocência do amigo. -Pelo jeito você não conhece mesmo a mãe que tem, né. Pois quem disse que ela não aceitou seu ebó yá? Saiba você que nenhuma oferenda a Iemanjá não é aceita até que afunde. Ela deve te gostado muito do seu prato, né meu filho. He, he, he, he.

O coração inocente do Zé imediatamente encheu-se de alegria. A Rainha Mãe gostou, com certeza.

Zeca d’Oxóssi da Aldeia Tupinambá

quinta-feira, 7 de junho de 2012

MANDINGA DE AMOR


MANDINGA DE AMOR


Nas últimas semanas tinha sido assim, João se trancava no quarto por horas ao telefone, falando com Claudia que morava do outro lado da cidade. Quando não era a conversa por telefone era o bate-papo pela internet, ou mensagens no celular. Nem almoçava direito.  Dona Estela já não aguentava mais aquilo, aquele melê todo, aquele nhém- nhém- nhém, aquele Claudinha pra cá, Claudinha pra lá. Tudo tinha limite, até o amor tem limites.

Aquilo era macumba da menina, só podia ser. A mãe tinha certeza. Há poucas semanas João nem ligava pra essas coisas, queria mesmo era ficar estudando pro vestibular no fim do ano que se aproximava. Ele dizia que não tinha tempo pra perder com essas coisas de namoradinha, só ficava de vez em quando. Já tinha até escolhido a área, medicina. Agora não tinha remédio, tinha até emagrecido.

-Joãozinho, sai desse quarto um pouco, meu filho, abre a janela, tá um sol bonito lá fora. Você está tão pálido, e esses olhos fundos? O que essa menina tem que você não para de falar come ela? Onde ela mora? Qual a religião dela?

Dona Estela foi procurar a Mãe Dara de Oxum, tentar desfazer aquele feitiço de qualquer forma. Faria o que fosse preciso para isso. Mãe Dara era sua comadre, saberia o que fazer, era ela quem ajudava sempre nestes momentos, haveria de lhe valer agora também.

-Pois é, Dara, o Joãozinho não quer saber de nada, só quer ficar no computador falando com aquela lá e não estuda mais, não come, não sai daquele bendito quarto, nem dorme direito. Agora fica falando tudo no diminutivo com ela no telefone e vive no mundinho da lua com cara de bobo. Vai ter gira sexta? Vai ser de Caboclo, de Preto Velho ou de quê? Preciso falar com a Pombagira, acho que só ela pode me ajudar.

Mãe Dara já estava acostumada àquele tipo de interrogatório da comadre. Estela amava muito o filho, era super-protetora, qualquer anormalidade, por mínima que fosse com o Joãozinho, ela vinha lhe procurar. –Sossega seu coração, mulher. E quem foi que disse que isso foi mandinga? Deixa estar que o amor também tem seus próprios feitiços.

-Mas eu sei que foi, Dara. Ele é só um menino ainda, não sabe direito o que está fazendo. Até um dias desses ele nem queria saber de perder tempo de estudo com namorada, agora ele só fala nela, só pensa nela, só vive pra ela; nem meu colo ele quer mais. Isso não é normal, eu conheço meu filho, eu criei ele na aba da minha saia, sei o que estou falando. É coisa de mãe, eu sinto.

Comadre, a senhora já se apaixonou alguma vez? A senhora já gostou de alguém de verdade? Já amou com amor de mulher alguém na sua vida? Já entregou seu coração sem medida a alguém sem saber por que estava fazendo aquilo, simplesmente amava e não tinha explicação? Pois é, comadre, eu posso lhe receber aqui na gira na sexta-feira, a Mulanbo, a Padilha, a Sete Saias ou a Navalha podem lhe receber sim, mas estou até vendo elas rirem debochadamente da senhora no meio da consulta. Comadre, aprenda uma coisa, não existe magia, feitiço ou mandinga mais forte que o amor, e isso não tem nada a ver com idade. Ele tem seus próprios caminhos, não obedece a pessoas ou espíritos. Em toda essa minha vida na umbanda jamais vi uma entidade dizer a alguém que vai fazer outra pessoa se apaixonar por ela. O amor é pura confusão, a senhora sabe disso, ele chega, bagunça o coração e a razão. Por isso nem guias, nem orixás, nem espíritos atrasados ou evoluídos têm poder sobre ele. A senhora não lembra quando gostou do Antônio aquela vez? Como a senhora ficou? Toda boba atrás dele. Mesmo ele sumindo por dias, mesmo ele sendo um cafajeste. Mesmo nós todas dizendo que aquilo era loucura a senhora não ouvia ninguém. Lembra?

Dona Estela baixou a cabeça. Dara a conhecia muito bem, falar no Antônio foi golpe baixo. Na verdade ele nunca saíra completamente de seu coração, e agora voltava com todo seu cheiro e seu sorriso. A lembrança do beijo e de todos os bons momentos ao lado dele apagava qualquer coisa ruim que ele lhe causara. A pergunta da comadre despertou em si um amor adormecido há muito tempo, abriu uma ferida já cicatrizada. Seus olhos pareciam perdidos no ar, olhando para dentro de si mesma. Depois de algum tempo calada, Dona Estela só conseguiu fazer um último pedido.

-Comadre, será que a senhora não faz algum trabalho pra trazer o Antônio não?

Zeca d’Oxóssi da Aldeia Tupinambá

sexta-feira, 1 de junho de 2012

A FLECHA DE OXÓSSI


UM LUTADOR

Seu Antônio ajoelhou-se perante o altar, as imagens dos orixás pareciam mudas naquele dia, estáticas. Seu coração apertado de solidão e angústia não via sentido naquele ato que tantas vezes repetira desde que montara o altar. Mas agora era bem diferente de todas as outras vezes, o axé parecia que tinha sumido dali, seus orixás deviam estar distantes, talvez até abandonado o altar para acudir, quem sabe, um outro filho mais necessitado e mas digno . Ele sabia que havia errado, sim, e por isso sua vida nos últimos tempos se tornou aquele inferno. Joana Maria, a vidente, lhe dissera que a lua na casa dois de seu signo indicava um inferno astral, e que o melhor a fazer era esperar aquela fase passar e depois tudo se resolveria naturalmente. Porém a tal fase estava demorando a passar, nada parecia fazer sentido. A mulher que tanto amava indo embora com as crianças, o chefe no trabalho exigindo maior produção quando ele já dava tudo de si, e ainda por cima as contas se acumulando com os boletos de prestações no fundo da gaveta. Mas o pior mesmo nem era tudo isso, o mais ruim era esse sentimento de angústia e solidão apertando se coração. Parecia que alguém fizera mandinga pra ele, ele tinha quase certeza disso, e por isso estava com medo; medo de tudo, até de sair na rua. Os problemas foram aparecendo assim, devagarinho, entrando como um visitante que não quer nada, foi se instalando e devagarinho trazendo outros problemas consigo, e quando percebeu eles já haviam tomado conta da casa e mandado a alegria embora. Todos lhes viraram as costas, os parentes, os amigos e até os orixás, agora imóveis no altar,  também abandonaram suas imagens e partiram para outras tarefas mais importantes.

Mesmo assim seu Antônio ajoelhou-se, começou sua reza pela Ave Maria, o coração apertado e vazio de alegria não o deixou terminar, não havia ânimo nem para terminar o sinal da cruz. Resignou-se a permanecer ajoelhado perante o altar por um tempo. Levantou-se e ficou a olhar as imagens no oratório no canto da parede, especialmente construído num momento de muita fé e esperança. Perguntava-se em pensamento, onde estarão agora? Por que não ajudam um filho necessitado? Olhou fixamente para a primeira imagem, a de Iemanjá com seu manto azul, nada. Depois para a segunda, de Oxalá, todo de branco, nada. E assim seguiu a terceira, Iansã e sua espada sempre em punho, também nada. No meio do altar encontrou Oxóssi, o orixá das matas com seu arco sempre esticado e a flecha sempre pronta para disparar. Seu Antônio chegou mais perto para ver os detalhes da imagem, reparou que ele tinha uma espécie de capacete de carcaça de águia, chegou mais perto, quase encostando a cabeça na imagem. Foi aí que aconteceu. A flecha de Oxóssi disparou e acertou a testa de seu Antônio, entre os dois olhos, um pouco acima deles. O Velho se afastou apenas um pouco para trás, a seta entrou direto, e permanecia lá.

Seu Antônio olhou de novo a imagem de Iansã ao lado, agora ele ouvia a rainha dos ventos, ela lhe dizia com voz de guerreira: Lute! Lute com todas as suas forças, eu estou aqui par lhe ajudar, conte com minha espada, mas lute!

O velho voltou novamente os olhos para Oxóssi, o chefe dos caboclos lhe dizia serenamente. -Lute com inteligência, saiba quem é seu verdadeiro inimigo, meu arco está a seu serviço.

O velho olhou para Ogum, do lado direito de Oxóssi, o guerreiro do ferro lhe disse em tom de ordem. –Lute com coragem! Vença seu medo, seu medo é seu único inimigo. Minha armadura esta à sua disposição.

Oxum, no canto direito do altar, lhe disse suavemente. –Olhe-se no espelho antes de lutar. Veja quem é seu inimigo, se o medo está em você, a luta também é contra você mesmo. Vença você mesmo. A força de minhas cachoeiras então aqui para lhe ajudar nessa luta.

Iemanjá, com sua cálida voz de sereia, lhe disse. –Nessa luta, as forças de minhas águas estão aqui para lhe limpar e lhe dar coragem, guerreiro. Mergulhe profundamente nessa energia, sinta essa força em você.

Com o coração já dando sinais de alegria novamente, olhou pra Oxalá, que, em tom benevolente de grande pai que é, disse. Quando um guerreiro se propõe alutar, em seu coração ele já venceu o inimigo. Meu escudo está aqui para lhe proteger, não há o que temer.

Seu Antônio ajoelhou-se novamente, com a testa encostada no chão, agradeceu em prantos as orientações dos grandes orixás. Levantou-se ainda banhado pelas lágrimas, mas com o coração aliviado e cheio de esperanças, parecia que os incômodos visitantes tinham desaparecidos para sempre dali e a alegria voltado à sua casa.

Antes de se sair, olhou ainda para a imagem de Pai Tomé, separada dos orixás num degrau mais abaixo do altar. Perguntou a este em pensamento: E o senhor, não vai me dizer nada? O velho, sentado em sua pedra e com seu cachimbinho na mão, apontando para o alto, na maior das tranquilidades, apenas lhe disse. – Confia neles, tenha fé.

Zeca d’Oxóssi da Aldeia Tupinambá