segunda-feira, 2 de abril de 2012

OXALÁ, UMA LIÇÃO DE HULMILDADE


A FILHA DE OXALÁ

Jacira abriu os olhos lentamente e foi se esticando toda na cama preguiçosa que insistia em segurá-la mais um pouco naquela manhã de sábado. Esse pouco já passara de duas horas do horário habitual de acordar. Na verdade Jacira sabia que o desânimo era sua depressão dando as caras pela primeira vez no ano. E ela sempre vinha pelo ao menos uma vez no ano, ela vinha, com toda certeza. Ela sabia também que a depressão começava a se instalar por causa da angústia sentida pelos últimos acontecimentos: recém-desempregada, a mãe muito mal no hospital, o marido bebendo e o filho andando com más companhias. Tudo isso junto era demais até para quem não sofria de depressão.

Mas hoje ela iria resolver essa situação, há semanas que não se consultava no terreiro do Pai Cipriano com ninguém. Das últimas vezes que passara com as entidades, os passes e banhos não pareciam surtir efeito, não o efeito que ela queria. Como boa filha de Iemanjá que era, sempre apelava primeiro à Grande Mãe nas aflições, depois a outros, conforme fosse o caso. Se a coisa fosse com a justiça, apelava para Xangô das pedreiras; se fosse caso de saúde, aí era com Oxóssi e seus caboclos; se a coisa fosse alguma contenda mais forte com alguém, o caso era com Ogum guerreiro; os negócios do coração eram com Oxum. Nesse caso Jacira cismou que não ia procurar nenhum Orixá nem entidade abaixo de Oxalá. A mulher queria porque queria não somente a ajuda do criador da Terra como também queria falar com ele pessoalmente, apesar de todos dizerem pra ela que isso era um absurdo, pois Oxalá não dá consulta. E nesse querer ela passou o mês sem se consultar com ninguém no terreiro do pai Cipriano. Sempre ia, mas ficava lá no canto, rezando e esperando o mestre maior aparecer em algum médium e chamá-la para a consulta. E nessa espera passou o mês na agonia e sua angústia aumentando.

Mas hoje isso ia mudar, ela tinha certeza disso, custasse o que custasse, ela ia falar com ele. Não levou oferenda nesse dia, foi resoluta que iria ser atendida pelo divino Orixá. A gira começou como sempre, humildemente o Pai iniciou os trabalhos com a prece de cáritas e os demais cânticos umbandísticos. Seguiu-se a defumação, a oração e o bate-cabeças. Os caboclos de Oxóssi foram os primeiros a descer, depois as entidades de Iansã, as de Oxum e os da Grande Mãe. A energia podia até ser vista no ar, mas nada de Oxalá aparecer. Por último o Pai chamou os pretos-velhos. Jacira se resignou no seu canto, não tinha jeito. Um dos pretos velhos incorporado num jovem médium da casa, que nem cambono tinha, chamou a triste mulher para falar com ela. Jacira achou que não tinha nada a perder e foi ouvir o que o velho tinha a dizer.

-Minha filha, o que se passa com essa sua cabeça? Não sabe que os filhos de Oxalá não podem ficar tristes?

-Sim, meu pai. Sei sim, mas só Oxalá pode me ajudar, eu tenho uma dor na alma que se apodera de mim de tempos em tempos.

-E porque você não pede pra ele tirar isso de você de uma vez?

-Eu quero pedir isso pra ele pessoalmente meu pai.

-E por que não pediu ainda? Ele está sempre ao seu lado, minha filha.

                -É que eu quero vê-lo, quero senti-lo, olhar em seus olhos, sei que quando eu olhar em seus olhos eu vou ser curada de toda dor e angústia.

-Minha filha, quantas vezes eu te recomendei um banho e fizeste sem fé? Quantas vezes eu te falei olhando nos olhos e não me reconheceste? Quantas vezes eu estive aqui e te aguardei para falar com você e não me deste atenção?

-Como assim, meu pai? Não estou entendendo, eu quero falar é com Oxalá...

-Pois está falando com ele, filha.

-O quê?! O senhor é Oxalá? Como pode? Me disseram que era um preto-velho que havia me chamado.

-Filha, eu posso tomar a forma que eu quiser para ajudar meus filhos na terra. Não só eu, várias dessas entidades que você vê aqui não foram exatamente negros que sofreram nas senzalas pelo Brasil, mas tomaram essa forma humilde para ajudar vocês.

Jacira ajoelhou e começou a chorar aos pés do velho.

-Pai, perdoa a minha ignorância, eu realmente não sabia dos teus mistérios.

-Isso não é mistério, minha filha, qualquer um que estudou um pouquinho dos livros da umbanda sabe disso. Esses livros também foram iluminados e são um meio de eu falar com vocês.

-Sim, meu pai. Sim, obrigado pelo ensinamento. Quero te pedir uma coisa ainda, permita que eu veja sua beleza, só assim encontrarei descanso e alívio para minha alma.

-Me dê a sua mão, filha. Vem comigo. Jacira ficou de pé e fechou os olhos, estendeu as mãos, e ao tocar as mãos do velho seu corpo ficou paralisado.

-Filha, pode abrir os olhos. Eu estou aqui à sua frente.

-Senhor, não és muito diferente da imagem de qualquer preto-velho que vemos lá na Terra. Achei que fosse forte e vigoroso, já que és o maior dos orixás.

-Não minha filha, não sou maior que ninguém, sou apenas mais um enviado de Olorum.

-Mas na Terra aprendemos que o senhor é o orixá maior.

-Isso depende de quem diz.

-Como assim?

-Se você perguntar para qualquer um dos orixás, ele irá dizer isso, se perguntar para mim, eu não direi isso.

-Sim, pai. Que lugar lindo! Que energia gostosa e sensação maravilhosa. Onde estou?

-Na minha casa, no Orum.

-Nossa, mas tão rápido. O Orum não é em outro plano, num lugar bem distante?

-Não filha, o Orum não é um lugar, ele está em todo lugar, basta pensar com o coração e ter fé.

-Pai, percebo que seus olhos se parecem brilahantes pedras de cristais e sua pele parece se rejuvenescer aos poucos.

-Sim, minha filha. Quanto mais você me conhece, mais eu fico jovem para você.

-Então meu pai, eu quero ficar aqui para sempre com o senhor, quero vê-lo em toda sua beleza e esplendor.

-Filha, ainda não compreendeste que eu e o Orum estamos em todo lugar, que para sentir-nos basta ter fé e para nos conhecer basta buscar o conhecimento de si próprio? Não é ficando aqui que vai evoluir, minha filha, você precisa buscar esse conhecimento no seu dia-a-dia lá na Terra ,em meio às pessoas e aos problemas terrenos. Não há sentido em buscar o conhecimento em outro plano sem poder colocá-lo em prática. Pois o conhecimento nada serve para alguém senão for para ajudar a si próprio e ao seu próximo. Eu preciso de você lá na Terra, minha filha, foi para isso que te enviei àquele lugar.

-O que? Eu sou uma enviada sua, meu pai?! Achei que eram só as entidades e orixás.

-Não, filha. Você é minha enviada. Na verdade todas as pessoas de bem são, mas a maioria deles se esqueceu disso quando cresceram e desaprenderam a amar.

-E esta angústia em minha alma que aparece de tempos em tempos em forma de depressão, meu pai, o que eu faço? Como posso ajudar as pessoas assim?

-Você tem que lutar minha filha. Por você ser especial, há forças poderosíssimas do outro lado querendo te atrapalhar em sua missão. A luta de todos é diária, não se pode baixar a guarda, nunca. Mas você pode contar conosco aqui do outro lado, sempre estivemos ao seu lado e nuca a abandonaremos. Há uma uma coisa que nem eu nem ninguém pode fazer por você: a sua parte.

-Está bem, meu pai, pode contar comigo, eu serei mais firme nessa luta.

-Então pode abrir os olhos novamente, filha.

Jacira abriu os olhos e viu que estava diante do jovem médium incorporado por um preto-velho. Ao se despedir do velho, que já não parecia mais tão velho assim, sentiu-se mais forte e animada. Desse dia em diante Jacira nunca mais deixaria de ver o Grande Pai Oxalá em todos os momentos de sua vida.
( Para o Alexandre)


Zeca d’Oxóssi da Aldeia Tupinambá

Um comentário:

  1. Às vezes sou desinteressado com as coisas, isso faz com que eu desaponte à todos que me querem bem, meus pais, esposa, irmãos e amigos, mas como ninguém é perfeito vou tentando ser mais atencioso. Por isso peço desculpas pela demora em ler o texto. Me sinto verdadeiramente lisonjeado por receber a dedicatória de um texto tão maravilhoso, ficou MUITO BOM!!!
    Conte comigo sempre...
    Um abraço
    Alexandre

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