A FILHA DE OXALÁ
Jacira abriu
os olhos lentamente e foi se esticando toda na cama preguiçosa que insistia em
segurá-la mais um pouco naquela manhã de sábado. Esse pouco já passara de duas
horas do horário habitual de acordar. Na verdade Jacira sabia que o desânimo
era sua depressão dando as caras pela primeira vez no ano. E ela sempre vinha
pelo ao menos uma vez no ano, ela vinha, com toda certeza. Ela sabia também que
a depressão começava a se instalar por causa da angústia sentida pelos últimos
acontecimentos: recém-desempregada, a mãe muito mal no hospital, o marido
bebendo e o filho andando com más companhias. Tudo isso junto era demais até
para quem não sofria de depressão.
Mas hoje ela
iria resolver essa situação, há semanas que não se consultava no terreiro do
Pai Cipriano com ninguém. Das últimas vezes que passara com as entidades, os
passes e banhos não pareciam surtir efeito, não o efeito que ela queria. Como
boa filha de Iemanjá que era, sempre apelava primeiro à Grande Mãe nas aflições,
depois a outros, conforme fosse o caso. Se a coisa fosse com a justiça, apelava
para Xangô das pedreiras; se fosse caso de saúde, aí era com Oxóssi e seus
caboclos; se a coisa fosse alguma contenda mais forte com alguém, o caso era
com Ogum guerreiro; os negócios do coração eram com Oxum. Nesse caso Jacira
cismou que não ia procurar nenhum Orixá nem entidade abaixo de Oxalá. A mulher
queria porque queria não somente a ajuda do criador da Terra como também queria
falar com ele pessoalmente, apesar de todos dizerem pra ela que isso era um
absurdo, pois Oxalá não dá consulta. E nesse querer ela passou o mês sem se
consultar com ninguém no terreiro do pai Cipriano. Sempre ia, mas ficava lá no
canto, rezando e esperando o mestre maior aparecer em algum médium e chamá-la
para a consulta. E nessa espera passou o mês na agonia e sua angústia
aumentando.
Mas hoje isso
ia mudar, ela tinha certeza disso, custasse o que custasse, ela ia falar com
ele. Não levou oferenda nesse dia, foi resoluta que iria ser atendida pelo divino
Orixá. A gira começou como sempre, humildemente o Pai iniciou os
trabalhos com a prece de cáritas e os demais cânticos umbandísticos. Seguiu-se
a defumação, a oração e o bate-cabeças. Os caboclos de Oxóssi foram os
primeiros a descer, depois as entidades de Iansã, as de Oxum e os da Grande
Mãe. A energia podia até ser vista no ar, mas nada de Oxalá aparecer. Por
último o Pai chamou os pretos-velhos. Jacira se resignou no seu canto, não
tinha jeito. Um dos pretos velhos incorporado num jovem médium da casa, que nem
cambono tinha, chamou a triste mulher para falar com ela. Jacira achou que não
tinha nada a perder e foi ouvir o que o velho tinha a dizer.
-Minha filha,
o que se passa com essa sua cabeça? Não sabe que os filhos de Oxalá não podem
ficar tristes?
-Sim, meu pai.
Sei sim, mas só Oxalá pode me ajudar, eu tenho uma dor na alma que se apodera
de mim de tempos em tempos.
-E porque você
não pede pra ele tirar isso de você de uma vez?
-Eu quero
pedir isso pra ele pessoalmente meu pai.
-E por que não
pediu ainda? Ele está sempre ao seu lado, minha filha.
-É
que eu quero vê-lo, quero senti-lo, olhar em seus olhos, sei que quando eu
olhar em seus olhos eu vou ser curada de toda dor e angústia.
-Minha filha,
quantas vezes eu te recomendei um banho e fizeste sem fé? Quantas vezes eu te
falei olhando nos olhos e não me reconheceste? Quantas vezes eu estive aqui e
te aguardei para falar com você e não me deste atenção?
-Como assim,
meu pai? Não estou entendendo, eu quero falar é com Oxalá...
-Pois está
falando com ele, filha.
-O quê?! O
senhor é Oxalá? Como pode? Me disseram que era um preto-velho que havia me
chamado.
-Filha, eu
posso tomar a forma que eu quiser para ajudar meus filhos na terra. Não só eu,
várias dessas entidades que você vê aqui não foram exatamente negros que
sofreram nas senzalas pelo Brasil, mas tomaram essa forma humilde para ajudar
vocês.
Jacira
ajoelhou e começou a chorar aos pés do velho.
-Pai, perdoa a
minha ignorância, eu realmente não sabia dos teus mistérios.
-Isso não é
mistério, minha filha, qualquer um que estudou um pouquinho dos livros da
umbanda sabe disso. Esses livros também foram iluminados e são um meio de eu
falar com vocês.
-Sim, meu pai.
Sim, obrigado pelo ensinamento. Quero te pedir uma coisa ainda, permita que eu
veja sua beleza, só assim encontrarei descanso e alívio para minha alma.
-Me dê a sua
mão, filha. Vem comigo. Jacira ficou de pé e fechou os olhos, estendeu as mãos, e ao tocar as
mãos do velho seu corpo ficou paralisado.
-Filha, pode
abrir os olhos. Eu estou aqui à sua frente.
-Senhor, não
és muito diferente da imagem de qualquer preto-velho que vemos lá na Terra.
Achei que fosse forte e vigoroso, já que és o maior dos orixás.
-Não minha
filha, não sou maior que ninguém, sou apenas mais um enviado de Olorum.
-Mas na Terra
aprendemos que o senhor é o orixá maior.
-Isso depende
de quem diz.
-Como assim?
-Se você
perguntar para qualquer um dos orixás, ele irá dizer isso, se perguntar para
mim, eu não direi isso.
-Sim, pai. Que
lugar lindo! Que energia gostosa e sensação maravilhosa. Onde estou?
-Na minha
casa, no Orum.
-Nossa, mas
tão rápido. O Orum não é em outro plano, num lugar bem distante?
-Não filha, o
Orum não é um lugar, ele está em todo lugar, basta pensar com o coração e ter
fé.
-Pai, percebo
que seus olhos se parecem brilahantes pedras de cristais e sua pele parece se rejuvenescer
aos poucos.
-Sim, minha
filha. Quanto mais você me conhece, mais eu fico jovem para você.
-Então meu
pai, eu quero ficar aqui para sempre com o senhor, quero vê-lo em toda sua
beleza e esplendor.
-Filha, ainda
não compreendeste que eu e o Orum estamos em todo lugar, que para sentir-nos
basta ter fé e para nos conhecer basta buscar o conhecimento de si próprio? Não
é ficando aqui que vai evoluir, minha filha, você precisa buscar esse
conhecimento no seu dia-a-dia lá na Terra ,em meio às pessoas e aos problemas
terrenos. Não há sentido em buscar o conhecimento em outro plano sem poder
colocá-lo em prática. Pois o conhecimento nada serve para alguém senão for para
ajudar a si próprio e ao seu próximo. Eu preciso de você lá na Terra, minha
filha, foi para isso que te enviei àquele lugar.
-O que? Eu sou
uma enviada sua, meu pai?! Achei que eram só as entidades e orixás.
-Não, filha.
Você é minha enviada. Na verdade todas as pessoas de bem são, mas a maioria deles
se esqueceu disso quando cresceram e desaprenderam a amar.
-E esta
angústia em minha alma que aparece de tempos em tempos em forma de depressão,
meu pai, o que eu faço? Como posso ajudar as pessoas assim?
-Você tem que
lutar minha filha. Por você ser especial, há forças poderosíssimas do outro
lado querendo te atrapalhar em sua missão. A luta de todos é diária, não se
pode baixar a guarda, nunca. Mas você pode contar conosco aqui do outro lado,
sempre estivemos ao seu lado e nuca a abandonaremos. Há uma uma coisa que nem eu nem ninguém pode fazer por você: a sua parte.
-Está bem, meu
pai, pode contar comigo, eu serei mais firme nessa luta.
-Então pode
abrir os olhos novamente, filha.
Jacira abriu os olhos e viu que
estava diante do jovem médium incorporado por um preto-velho. Ao se despedir do
velho, que já não parecia mais tão velho assim, sentiu-se mais forte e animada.
Desse dia em diante Jacira nunca mais deixaria de ver o Grande Pai Oxalá em
todos os momentos de sua vida.
(
Para o Alexandre)
Zeca d’Oxóssi da Aldeia
Tupinambá
Às vezes sou desinteressado com as coisas, isso faz com que eu desaponte à todos que me querem bem, meus pais, esposa, irmãos e amigos, mas como ninguém é perfeito vou tentando ser mais atencioso. Por isso peço desculpas pela demora em ler o texto. Me sinto verdadeiramente lisonjeado por receber a dedicatória de um texto tão maravilhoso, ficou MUITO BOM!!!
ResponderExcluirConte comigo sempre...
Um abraço
Alexandre