quinta-feira, 26 de abril de 2012

O CABOCLO DOS ORIXÁS


SETE FLECHAS

Uma doce e suave canção tirada de uma flauta de bambu anunciava a chegada do barco enfeitado de flores e seu arranjo fúnebre, calmamente o barco deslizava sobre o tranquilo rio Juti. Um som seco e lento de um tambor solitário veio juntar sua tristeza à da canção da flauta, era a cerimónia de enterro do maior e mais valente guerreiro das tribos kaiwri. A guerra entre as tribos dessa região, em um acordo único, parou por sete dias para esta cerimônia. Guerreiros, caciques e pajés vieram de todos os cantos conhecidos para o ato solene. Perfilados logo após a margem direita do rio, mulheres da tribo Gapó choravam copiosamente a partida para o reino de Tupã do bravo que as defendia com sua própria vida. Até os índios mais valentes não seguravam a emoção e deixavam as lágrimas caírem livremente pela face, arrancando a tristeza do peito. Enquanto em vida, o guerreiro, era exímio atirador de flechas, lutava bravamente pelos seus e tinha o coração bondoso com todos, inclusive com os inimigos. Nunca houve um caçador mais habilidoso, um amigo mais leal, um guerreiro mais combativo e ao mesmo tempo mais doce e mais brando que ele, era o que todos diziam em uníssono. Por isso, também vieram para a cerimônia, além de outros representantes das forças universais, Ogum, o guerreiro de ferro; Xangô, o orixá da justiça; Iansã, a rainha guerreira; Iemanjá, a Grande Mãe das águas marinhas; Oxum, a deusa dos rios e cachoeiras, Obaluaê, o orixá da evolução, até Oxóssi, o senhor das falanges a qual pertencia o índio guerreiro, veio pessoalmente também prestar sua homenagem. Além desses orixás africanos que adotaram as terras brasileiras e outros representantes das forças universais, Shiva, o deus do oriente que exalava seu perfume de bálsamo oriental e Miguel, o arcanjo das falanges celestiais, também estavam presentes. Todos em silêncio, perfilados à margem esquerda do rio.

Enquanto o cortejo passava tranquilamente carregado pelas águas do rio, os pajés com seus cachimbos e maracás entoavam mantras sagrados, cada um em sua própria língua, e requeriam dos guias espirituais ajuda para a entrada do guerreiro no reino de Tupã.

Uma última batida de tambor cessou todo o som no local e um índio abatidíssimo de tristeza, amigo de Sete Flechas em vida, destacou-se do meio do pelotão de guerreiros e esticou seu arco, enquanto o cacique da tribo acendia com uma tocha a ponta da flecha, o índio apontou para o barco florido e atirou sua seta flamejante. A flecha cortou o vento em assobio sibilante e descreveu uma parábola no ar, acertando o canto do barco. Logo as chamas se espalharam e uma forte comoção tomou conta de todos os presentes - deuses e mortais. O encontro da emoção de Shiva, o deus perfumado do oriente, com a comoção dos orixás africanos provocou um frenesi no ambiente e uma histeria coletiva começou a tomar conta dos corações e bocas dos mortais. Enquanto a o fogo se espalhava pelo corpo do valente no barco, a fumaça ganhava contornos diversos que se elevavam aos céus em espirais. Choros copiosos, mantras sagrados, sons de maracás, gritos de guerra, batidas no peito, tambores retumbantes, flautas histéricas e vozes em línguas diversas formavam uma corrente de energia que sua vibração podia ser ouvida, sentida e vista a olho nu por qualquer mortal. Até os animais da floresta, do rio e do ar pararam neste instante em profundo sinal de respeito.

Por fim, num tufão de chamas e fumaça esbranquiçada, Sete Flechas levantou-se de seu esquife, e olhando para a margem esquerda, onde estavam os deuses, fez seu sinal de agradecimento e, espalhando-se por cima dos índios lamentosos do lado direito do rio, ganhou rapidamente os céus em direção ao reino de Tupã.

Logo uma reunião entre os deuses ali presentes se formou, confabularam entre si algumas questões e depois permaneceram em silêncio novamente. Pouco depois o índio que acendera aos céus retornava, agora com seu ofá carregado de flechas às costas, seu arco na mão e um cocar feito coroa colorida a cobrir-lhe a cabeça, parecia mais alto e mais forte que antes.

Ajoelhou-se ante os seres celestiais em sinal de aceitação de sua missão. Oxóssi se aproximou e colocou uma flecha em seu braço direito, era seu presente ao filho valente, era o poder de curar os enfermos transferido a ele. Em seguida Ogum também se aproximou e colocou em seu braço esquerdo outra flecha, era o poder de defender os filhos na terra de todas as maldades. Xangô também lhe deu seu presente, uma flecha que cruzou em seu peito para que ele defendesse a humanidade de toda injustiça; e assim seguiu Iansã, que cruzou outra flecha em suas costas para que ele defenda seus filhos de qualquer traição; Oxum, que colocou uma flecha em sua perna esquerda para que ele possa lavar os caminhos do homem e os defender de todas as forças contrárias à vontade divina; Iemanjá com uma flecha em sua perna direita para que ele possa abrir os caminhos materiais e espirituais de tantos filhos por ela amados; e por fim Obaluaê, que colocou em suas mãos sua flecha sagrada para que ele distribuísse à humanidade a divina força da fé e da verdade. Shiva, por sua vez, encantou o índio com seu maravilhoso perfume das terras do oriente.

Renovado e abençoado pelos deuses, o guerreiro em novo corpo agradeceu os presentes, levantou-se, e, virando-se em direção aos seus do outro lado do Juti, soltou um forte brado de guerra.  As tribos da outra margem do rio fizeram grande alarido de alegria com gritos, flautas, tambores e maracás, e o que era pranto se tornou uma grande festa entre deuses e índios. A comemoração seguiu pela noite afora e a alegria pela mata adentro, e a partir desse dia as guerras entre as tribos daquela região cessaram para sempre, pois o índio, agora elevado à condição de protetor dos filhós de Oxalá e Tupã, era parte de todas as tribos e os tornou uma só família.

(Ao meu Pai Cristiano de Oxosse)

Zeca d’Oxóssi da Aldeia Tupinambá

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