quarta-feira, 7 de março de 2012

ADOREI AS ALMAS


O HOMEM DO TEMPO

Na estrada empoeirada de terra batida e sob um sol escaldante que confundia a visão em miragens visionárias, aparecia lá longe um vulto pequenino em movimento no horizonte. Lentamente o vulto ia se avolumando até se distinguir entre a paisagem um carro de passeio vermelho chegando à cidadezinha e levantando um poeirão atrás de si. O veículo parou bem em frente a uma loja de produtos artesanais e dele desceram dois homens e duas mulheres com ares de turistas, todos jovens. Após esticarem os músculos de braços e pernas, o grupo confabulou entre si algumas tarefas e se dividiram, enquanto as mulheres entraram na loja de artesanatos, os rapazes foram encher o tanque do carro no posto de gasolina mais à frente. Depois de uma rápida olhada no interior da loja, Janete, a mais nova, saiu para aguardar a amiga lá fora.

 – Bom dia! Era uma voz grave que vinha do lado da porta da loja, tratava-se de um velho senhor negro de barbas brancas, roupas rotas, um chapéu de palha na cabeça e fumando um cachimbo sentado num banco de madeira sob o toldo da varanda, ao lado dele havia um pedaço de pau, um violão velho e no chão uma caixinha com umas moedas onde se lia um singelo OBRIGADO à caneta. Como o homem sorria de forma simpática, Janete respondeu também de forma simpática ao cumprimento do nativo. - A viagem está sendo boa? Quis saber o preto velho.

 – Está sim senhor. Estamos indo pra Santa Luzia, paramos um pouco pra descansar, com esse tempo chegaremos hoje à noite na cidade.

- E melhor ficarem por aqui hoje e seguir amanhã, vai chover forte.

- Imagina olha o sol que está fazendo, e o céu não tem nem nuvens. Temos que chegar logo não aguento mais essa estrada.

-Nete, tem umas coisinhas muito bacanas nesta loja, olha o que eu comprei para usar com aquele vestido. Era Patrícia, a mais velha que saía da loja carregada de bugigangas.

- Pati, este senhor está dizendo que vai chover forte e que é melhor a gente ficar por aqui hoje, pode?

-Bom dia, menina!

- Bom dia senhor. Há não, temos que ir hoje, mesmo que chova.

Neste momento chegaram os rapazes a pé para dar a notícia que o carro precisava de uns reparos e que só ia ficar pronto mais tarde. Bem, o jeito era comer algo e esperar. O grupo se dirigiu a uma lanchonete em frente da loja para a refeição. Da lanchonete, Janete e seus amigos observaram que uma mulher trazia um moleque raquítico de uns quatro anos pelas mãos e, após falar algo ao velho, este pegou umas ervas ao seu lado no banco, pitou seu cachimbo e baforou no corpo da criança enquanto mexia com a boca parecendo rezar algo. A mulher agradeceu o velho, jogou umas notas amassadas na caixinha e foi embora.

Passada a refeição o grupo foi sentar-se em frente à loja sob o toldo que oferecia uma sombra convidativa e aproveitaram para conversar mais com o velho simpático. O velho pegou seu velho violão e desfiou umas modas de viola de ponteio rasgado, conversou sobre os tempos de outrora naquelas bandas, quando o senhor branco ainda mandava sob o fio do chicote, contou histórias de assombração das matas e dos livramentos dos caboclos de Oxóssi. A conversa seguiu nessa toada sem pressa até a sombra curta do toldo se esticar para lá do meio da rua de terra poeirenta. Um rapaz veio trazer o carro que já estava pronto e o estacionou junto à porta da loja. De repente o céu se fechou e umas nuvens de chumbo se formaram sobre a cidade, Janete sugeriu ficarem mais um pouco até que a chuva que parecia iminente passar, ao que todos concordaram.

A chuva caiu torrencialmente sobre a pequena cidade. As ruas logo viraram leito de rio e o carro ia afundando em meio às águas lamacentas, para desespero dos turistas. Janete solicitou ajuda ao velho.

- O senhor parece conhecer tantas coisas, tem o poder da cura e disse que foi salvo tantas vezes dos perigos da floresta, será que não tem o poder sobre o tempo também não?

O velho, que parecia tranquilo o tempo todo, sorriu gostosamente entre a fumaça do cachimbo. – Na verdade eu não tenho poder nenhum, nem de dar cura a ninguém, eu sou só um homem comum.

- Mas eu vi o senhor benzer aquele menino, vi o jeito que a mulher agradeceu tão devotamente o senhor, ouvi como o senhor profetizou a chuva quando não havia nem sinal de nuvem, e estas histórias todas que o senhor contou pra nós...

-Na verdade eu só aprendi o que meus pais me ensinaram, é que vocês não sabem ler o que está escrito na natureza, não é só nuvem que é sinal de chuva. Sobre a cura, isso é com as ervas certas e a fé das pessoas, não sou eu. Eu não tenho poder nenhum.

O grupo se resignou sob a inabalável força da natureza, mas permaneceram de pé assistindo ao afogamento do veículo que já estava acima da linha da porta àquela altura.

- Mas eu conheço quem tem o poder sobre o tempo. Era o velho em tom maroto atrás da fumaça. Os jovens se animaram novamente. – E quem é? Ele pode nos ajudar agora? Era o jovem mais alto do grupo, o motorista.

- É a minha mãe. O velho pegou o pedaço de pau a seu lado, na verdade sua bengala, levantou-se com dificuldade e, encostado no mourão de sustentação da varanda, deu duas baforadas no cachimbo para o alto, levantou seu cajado e gritou com uma força imprópria par sua idade: - Eparrei, Iansã! Valei minha mãe guerreira que seus filhos precisam de sua ajuda. Neste momento um raio cruzou o céu sob a mata no horizonte e um trovão retumbou no ar sob a cidade. A chuva foi cessando imediatamente seu chiado até parar de vez, para surpresa geral dos jovens boquiabertos.
            Lentamente a água das ruas foi baixando e logo só sobrou lama, que também secou logo porque o sol voltou a brilhar no firmamento. Aquela noite os jovens dormiram na cidade e aproveitaram para ouvir mais as histórias do velho sábio. No dia seguinte a caixinha do velho amanheceu recheada de notas que ele nem sabia que existiam.

2 comentários:

  1. Zeca, adorei como o texto ficou! Uma surpresa atrás da outra, parabéns!!

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  2. Parabéns pela forma como retratou esta entidade tão carismática! Só achei o grito à Yansã incompatível com a entidade, mas é só uma opinião de um mero leitor. Adoro seus textos e este também ficou ótimo.
    Abraço
    Alexandre

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