FERRAZ
Ninguém
trabalha na polícia, ninguém tem emprego de policial, polícia não é profissão,
ou o sujeito é polícia ou não é; vejo muito moleque chegar com uma idéia errada
na polícia e depois de três ou quatro meses na rua pedir baixa. Veja o senhor...
Zé, traz outra cerveja! Outro dia eu estava numa ocorrência dos diabos. Aquele
dia eu e o Cabo Santos rondávamos à toa pelos lados da Estrada da Capela, lá
pelos lados do Bairro novo, quando era só mato e barro por lá. Obrigado, Zé, bem
gelada, vire o copo, isso; não tínhamos nada que fazer ali, era o hábito da
rotina, um dia tranquilo e uma tarde modorrenta depois do almoço, estávamos devagar,
como as ruas eram de terra algumas poças de água barrenta aqui e ali sujavam a viatura
e eu só pensava no trabalho que ia dar pra lavar aquilo. Mesmo sendo uma
rotina, sabíamos que tinha que ficar alertas, porque quando entramos em
qualquer lugar ermo, já entramos espertos e de armas em punho. Mas não deu nem
tempo de usá-las ou de apontarmos para alguma coisa, quando vimos já estávamos
sendo alvos de vários tiros de uma só vez, chovia balas em nossa direção. Como
os tiros vinham da frente e do lado esquerdo da viatura, pulei para fora pela
porta direita, enquanto o Santos deitava nos bancos dianteiros. Antes de eu
puxar o gatilho, em meio ao barulho infernal dos pipocos e balas zunindo nos
ouvidos, o Cabo gritou que havia sido atingido no ombro, mesmo assim ele
procurava com a ponta da pistola sobre o painel a direção para onde atirar. Os
tiros eram tantos e tão seguidos que eu não conseguia levantar a cabeça para
olhar quantos atiravam ou de onde partiam. Com o tempo agente passa a
reconhecer pelo barulho e pelo estrago que a bala faz que tipo de arma está
sendo usada, era claro que eles usavam revólveres e pistolas, e percebi que
eram pelo menos uns três do outro lado, e pelo jeito tinham bastante munição,
pois não paravam de atirar. Eu colocava apenas a pistola para fora e atirava na
direção contrária; o parceiro deitado na viatura pedia ajuda pelo rádio e
levantava a cabeça, apenas para ver onde atirar, e mandava ver. Olha, por mais
que você receba um bom treinamento para enfrentar este tipo de situação e por
mais que se enfrente esse tipo de ocorrência, a verdade é que você nunca se
acostuma e nunca acha que está realmente preparado para essa hora. Com o
barulho das balas em sua direção o coração dispara imediatamente e tudo o que o
cérebro acumulou de conhecimento em anos de profissão se desorganiza, entra em
caos. Mas todo mundo sabe, em qualquer situação de perigo, qualquer uma, o pior
inimigo é o desespero, se você se desespera o medo te domina e não o deixa reagir
direito. Mesmo assim há um breve momento de descontrole entre o disparo da
arritmia e o instinto de sobrevivência, aí o cérebro começa a te alertar para manter
o controle. Numa destas levantadas de cabeça do Santos para ver em quem estava
atirando, uma bala o atingiu na testa e ele perdeu os sentidos. Ouvi o grito
curto e percebi que ele parou de atirar, chamei por ele para que não me
deixasse sozinho naquela situação e não obtive resposta, achei que estivesse
morto e, justamente quando eu começava a controlar o medo, comecei a achar que
era meu fim. Os tiros diminuíram a intensidade e já havia um tempo maior entre
um pipoco e outro, o ruim é que agora eram todos na minha direção. Aproveitei o
momento e estiquei o braço, alcançando o mike do rádio dentro da viatura para apressar
o socorro. Nesse momento, me lembrei que havia uma metralhadora sobre o banco
traseiro, não pensei duas vezes, puxei a danada por entre os bancos dianteiros,
estava carregada até o talo. Eu sabia que, estando sozinho, ela não faria muita
diferença, mas pelo menos eu tinha mais munição até eles, quem sabe, fugirem ou
chegar algum reforço. Percebi que os tiros agora não vinham de uma só direção,
os bandidos, aproveitando minha desvantagem, começavam a se espalhar,
aumentando o raio de ação, logo eu estaria totalmente cercado. Lutando contra a
razão querendo entrar novamente em desespero, me dizendo que minha desvantagem
era enorme, meu coração, acho que foi isso, me fez levar a mão por entre a
camisa e o colete onde eu carregava uma imagem de São Jorge pendurada ao
pescoço. Não sei se foi insanidade, se foi instinto de sobrevivência, burrice
ou um lampejo de inteligência, só sei que beijei o santinho, juntei a metranca
no peito e clamei instintivamente, - Valei, meu pai Ogum! Não deixa eu morrer
agora. Saravá! Levantei e segui justamente na direção dos tiros - que não
pararam - espremendo o gatilho no guarda-mata e espalhando a ponta do cano da
metralhadora em todas as direções, os tiros comiam soltos em sucessões de RRRRRRs
para todo lado. Vi um cair logo a minha frente e outro alvejado pelas costas
quando corria daquela fúria insana, o outro, atrás de uma moita, eu nem vi cair.
Só soltei o gatilho depois de alguns segundos das munições terem acabado.
Os tiros haviam
cessado, o silêncio era absoluto. Sem conferir se estavam ou não mortos, corri
para a viatura, colocando o Cabo no banco de trás e, num cavalo-de-pau que levantou
poeira, virei o carro e corri para a autoestrada em direção a um hospital. Ao
chegar ao hospital, não tive tempo para dar explicações, desmaiei antes de
completar a primeira frase à enfermeira. Dois dias depois, ao acordar, fiquei
sabendo que o Cabo Santos havia sobrevivido e que eu recebera três tiros, um de
raspão no pescoço, outro no ombro e um na perna direita, nada sério.
Zé, mais uma
gelada! Essa você paga.
Zeca d’Oxóssi da Aldeia Tupinambá
Que conversa danada de boa hein?!! Muito bom.
ResponderExcluirMas esqueci de perguntar o pq do FERRAZ?
ResponderExcluirferraz é o nome do soldado. na PM os soldados são chamados pelo sobrenome. além disso, ferraz sugere ferrenho, que vem de ferro, o elemento principal de Ogum. abç
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