terça-feira, 6 de março de 2012

OGUM YÊ


FERRAZ


Ninguém trabalha na polícia, ninguém tem emprego de policial, polícia não é profissão, ou o sujeito é polícia ou não é; vejo muito moleque chegar com uma idéia errada na polícia e depois de três ou quatro meses na rua pedir baixa. Veja o senhor... Zé, traz outra cerveja! Outro dia eu estava numa ocorrência dos diabos. Aquele dia eu e o Cabo Santos rondávamos à toa pelos lados da Estrada da Capela, lá pelos lados do Bairro novo, quando era só mato e barro por lá. Obrigado, Zé, bem gelada, vire o copo, isso; não tínhamos nada que fazer ali, era o hábito da rotina, um dia tranquilo e uma tarde modorrenta depois do almoço, estávamos devagar, como as ruas eram de terra algumas poças de água barrenta aqui e ali sujavam a viatura e eu só pensava no trabalho que ia dar pra lavar aquilo. Mesmo sendo uma rotina, sabíamos que tinha que ficar alertas, porque quando entramos em qualquer lugar ermo, já entramos espertos e de armas em punho. Mas não deu nem tempo de usá-las ou de apontarmos para alguma coisa, quando vimos já estávamos sendo alvos de vários tiros de uma só vez, chovia balas em nossa direção. Como os tiros vinham da frente e do lado esquerdo da viatura, pulei para fora pela porta direita, enquanto o Santos deitava nos bancos dianteiros. Antes de eu puxar o gatilho, em meio ao barulho infernal dos pipocos e balas zunindo nos ouvidos, o Cabo gritou que havia sido atingido no ombro, mesmo assim ele procurava com a ponta da pistola sobre o painel a direção para onde atirar. Os tiros eram tantos e tão seguidos que eu não conseguia levantar a cabeça para olhar quantos atiravam ou de onde partiam. Com o tempo agente passa a reconhecer pelo barulho e pelo estrago que a bala faz que tipo de arma está sendo usada, era claro que eles usavam revólveres e pistolas, e percebi que eram pelo menos uns três do outro lado, e pelo jeito tinham bastante munição, pois não paravam de atirar. Eu colocava apenas a pistola para fora e atirava na direção contrária; o parceiro deitado na viatura pedia ajuda pelo rádio e levantava a cabeça, apenas para ver onde atirar, e mandava ver. Olha, por mais que você receba um bom treinamento para enfrentar este tipo de situação e por mais que se enfrente esse tipo de ocorrência, a verdade é que você nunca se acostuma e nunca acha que está realmente preparado para essa hora. Com o barulho das balas em sua direção o coração dispara imediatamente e tudo o que o cérebro acumulou de conhecimento em anos de profissão se desorganiza, entra em caos. Mas todo mundo sabe, em qualquer situação de perigo, qualquer uma, o pior inimigo é o desespero, se você se desespera o medo te domina e não o deixa reagir direito. Mesmo assim há um breve momento de descontrole entre o disparo da arritmia e o instinto de sobrevivência, aí o cérebro começa a te alertar para manter o controle. Numa destas levantadas de cabeça do Santos para ver em quem estava atirando, uma bala o atingiu na testa e ele perdeu os sentidos. Ouvi o grito curto e percebi que ele parou de atirar, chamei por ele para que não me deixasse sozinho naquela situação e não obtive resposta, achei que estivesse morto e, justamente quando eu começava a controlar o medo, comecei a achar que era meu fim. Os tiros diminuíram a intensidade e já havia um tempo maior entre um pipoco e outro, o ruim é que agora eram todos na minha direção. Aproveitei o momento e estiquei o braço, alcançando o mike do rádio dentro da viatura para apressar o socorro. Nesse momento, me lembrei que havia uma metralhadora sobre o banco traseiro, não pensei duas vezes, puxei a danada por entre os bancos dianteiros, estava carregada até o talo. Eu sabia que, estando sozinho, ela não faria muita diferença, mas pelo menos eu tinha mais munição até eles, quem sabe, fugirem ou chegar algum reforço. Percebi que os tiros agora não vinham de uma só direção, os bandidos, aproveitando minha desvantagem, começavam a se espalhar, aumentando o raio de ação, logo eu estaria totalmente cercado. Lutando contra a razão querendo entrar novamente em desespero, me dizendo que minha desvantagem era enorme, meu coração, acho que foi isso, me fez levar a mão por entre a camisa e o colete onde eu carregava uma imagem de São Jorge pendurada ao pescoço. Não sei se foi insanidade, se foi instinto de sobrevivência, burrice ou um lampejo de inteligência, só sei que beijei o santinho, juntei a metranca no peito e clamei instintivamente, - Valei, meu pai Ogum! Não deixa eu morrer agora. Saravá! Levantei e segui justamente na direção dos tiros - que não pararam - espremendo o gatilho no guarda-mata e espalhando a ponta do cano da metralhadora em todas as direções, os tiros comiam soltos em sucessões de RRRRRRs para todo lado. Vi um cair logo a minha frente e outro alvejado pelas costas quando corria daquela fúria insana, o outro, atrás de uma moita, eu nem vi cair. Só soltei o gatilho depois de alguns segundos das munições terem acabado.

Os tiros haviam cessado, o silêncio era absoluto. Sem conferir se estavam ou não mortos, corri para a viatura, colocando o Cabo no banco de trás e, num cavalo-de-pau que levantou poeira, virei o carro e corri para a autoestrada em direção a um hospital. Ao chegar ao hospital, não tive tempo para dar explicações, desmaiei antes de completar a primeira frase à enfermeira. Dois dias depois, ao acordar, fiquei sabendo que o Cabo Santos havia sobrevivido e que eu recebera três tiros, um de raspão no pescoço, outro no ombro e um na perna direita, nada sério.

Zé, mais uma gelada! Essa você paga.

Zeca d’Oxóssi da Aldeia Tupinambá

3 comentários:

  1. Que conversa danada de boa hein?!! Muito bom.

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  2. Mas esqueci de perguntar o pq do FERRAZ?

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  3. ferraz é o nome do soldado. na PM os soldados são chamados pelo sobrenome. além disso, ferraz sugere ferrenho, que vem de ferro, o elemento principal de Ogum. abç

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